quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A língua é dinâmica

PASQUALE CIPRO NETO

Se o dicionário não dá...


A língua vem antes do dicionário, ou seja, antes vem o uso dos vocábulos e depois o registro do uso


VOLTA E meia recebo mensagens de pessoas indignadas com o uso nos meios de comunicação de determinadas palavras "que não existem". Essa afirmação provavelmente resulte do que essas pessoas (não) encontram nos dicionários e vocabulários que consultam.
De início, é bom dizer que a língua vem antes do dicionário, ou seja, antes vem o uso das palavras e depois o registro desse uso. É claro que esse registro se apoia em alguns critérios. Não basta que fulano de tal diga ou escreva uma vez determinada palavra para que ela seja registrado nos dicionários ou no "Vocabulário Ortográfico", que é publicado pela ABL e tem força de lei.
O registro se baseia em critérios pré-escolhidos, que levam em conta o corpus estabelecido, a quantidade de ocorrências etc. Antes que alguém pergunte, o corpus (no caso de um dicionário) é a coletânea ou conjunto de documentos, obras etc. de que serão extraídos os vocábulos que ganharão registro. Em geral, o corpus de um dicionário como o "Aurélio" ou o "Houaiss" é vasto: inclui obras literárias clássicas e modernas, textos jornalísticos, publicitários, acadêmicos, científicos, jurídicos etc., a linguagem oral, familiar etc., os jargões, as gírias etc.
Hoje em dia, com os fartos recursos propiciados pela informática, a definição do que se vai registrar nos dicionários tornou-se tarefa mais fácil para os dicionaristas. Cria-se um programa de computador capaz de contar as palavras e informar a quantidade de ocorrências delas no corpus determinado. Feita essa catação eletrônica, resta às equipes a tarefa de analisar as ocorrências e os usos desses vocábulos.
Mas é claro que os dicionários só podem registrar uma palavra depois que ela entra em circulação, é usada aqui e ali, na linguagem X ou na Y etc. Vejamos dois exemplos: "sediar" e "imexível". A primeira palavra circula há muito tempo (o "Houaiss" diz que desde 1970), mas só recentemente ganhou registro nos dicionários. Um deles foi justamente o "Houaiss", em sua primeira edição (2001). "Mas isso (2001) é "recente'?", perguntarão alguns? Na nossa realidade, sim. A reedição de um dicionário é tarefa hercúlea, de alto custo, o que exige largo intervalo entre uma edição e outra. Nesse ínterim, a língua respira, as palavras surgem, mas muita gente acha que, se o dicionário não dá...
Se não dá, mais cedo ou mais tarde dará, se o uso se consagrar, é claro. É aí que pode entrar em cena o adjetivo "imexível", "cunhado" pelo ex-ministro collorido Rogério Magri, que um belo dia disse que a única coisa "imexível" era justamente elle (rarará!). O mundo caiu nas costas do pobre Magri, por ter ele usado um termo "que não existia".
O termo usado por Magri é perfeitamente sintonizado com os processos de formação das nossas palavras. De fato, faltava-lhe registro, ou seja, uso, mas daí para que o mundo desabasse sobre Magri são outros quinhentos. Quem saiu em defesa de Magri? O professor Antônio Houaiss, que, embora inimigo "íntimo" do governo ao qual Magri servia, veio a público dizer que "imexível"... Preciso repetir?
Bem, talvez justamente pela intervenção do professor Houaiss no episódio Magri, o "Houaiss" registrou "imexível" em sua primeira edição (2001), embora o uso do termo fosse quase sempre jocoso e se restringisse à informalidade. A última edição do "Houaiss" (2009) mudou de ideia, ou seja, cancelou o registro de "imexível", que, no entanto, permanece no "Vocabulário Ortográfico", verdadeiro coração de mãe. Mas isso é outra história. É isso.


..........................
Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 12 de agosto de 2010.

Nenhum comentário: