segunda-feira, 26 de julho de 2010

Entrevista

JORGE CASTAÑEDA

Brasil fracassa em aspiração de ser potência mundial

PARA HISTORIADOR MEXICANO, GOVERNO LULA PRIVILEGIOU QUESTÕES ERRADAS E SE ESQUECEU DE VIZINHOS EM CONFLITO

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DA ILUSTRADA

A crise política na qual Colômbia e Venezuela estão mergulhadas deve ser o principal tema do debate sobre democracia na América Latina, hoje em São Paulo, do qual participará o historiador mexicano Jorge Castañeda.
Em entrevista concedida à Folha por telefone na semana passada, Castañeda criticou Luiz Inácio Lula da Silva. Para o intelectual, o presidente brasileiro coleciona fracassos em sua política externa e deveria preocupar-se mais com os conflitos regionais, e não em tornar-se protagonista em casos distantes e polêmicos.
Leia, abaixo, trechos da entrevista .


Folha - Como o sr. vê a política externa de Lula, em especial no que diz respeito à América Latina?
Jorge Castañeda - A inércia geográfica, econômica e demográfica da América do Sul levou o Brasil a ter um papel de maior liderança do que antes. Isso aconteceria com ou sem o governo Lula. O fato de Lula estar fazendo um governo bom internamente faz com que o peso natural do Brasil se exerça de maneira mais clara na região.
Porém, tudo o que Lula tentou fazer fora do âmbito interno só resultou em fracassos. Tratou de obter um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, não o obteve. Tratou de priorizar a Rodada Doha e não conseguiu nada. Tratou de ser um ator central para que se lograsse um acordo em Copenhague e não só não o alcançou como o Brasil em parte foi responsável para que isso não acontecesse.
Tratou de se apresentar como protagonista num acordo nuclear com o Irã, mas sua mediação foi rechaçada pelo mundo inteiro, exceto pela Turquia e pelo próprio Irã.
Mas creio que mais importante é o fato de que Lula se absteve de mediar ou resolver conflitos que estão mais perto do Brasil. E há tantos. Os de Uruguai e Argentina, de Colômbia e Venezuela, de Peru e Chile, de Colômbia e Nicarágua, de Chile e Bolívia e o de Equador e Peru. Conflitos próximos abundam, e o Brasil não exerceu nenhuma liderança em nenhum desses casos.
Tampouco se apresentou para ajudar em problemas internos de outros países da América Latina. Salvo parcialmente no caso da Bolívia, e isso o fez para defender os interesses da Petrobras.
Suas aspirações de potência mundial fracassaram, e ele não mostrou interesse de atuar como legítima potência regional. Lula faz um governo muito bom internamente, mas coleciona fracassos e erros no âmbito externo.

Como o sr. viu a libertação dos presos cubanos e o papel da Espanha?
A libertação foi um triunfo de Guillermo Fariñas. E um triunfo póstumo de Orlando Zapata. [O chanceler espanhol Miguel Ángel] Moratinos apareceu sem ser convidado e tratou de obter benefícios políticos por algo que não fez.
O importante é que, pela primeira vez, a ditadura cubana enfrentou um cidadão cubano, em Cuba, e perdeu. Ganhou o cidadão. Isso é muito novo e muito significativo. O que não é novo é que Fidel e Raúl Castro usem presos políticos como fichas de negociação com outros países.
É lamentável que o governo socialista da Espanha tenha se prestado a essa manobra. Se Cuba quer deportar seus presos, que os deporte, haverá muitos países que os receberão de braços abertos, incluindo os que por lei estão obrigados a fazê-lo, como os EUA.

No México, depois de ter caído para terceira força política em 2006, o PRI (Partido da Revolução Institucional) vem se recuperando, apesar de ter sido contido nas últimas eleições pela aliança entre PRD (Partido da Revolução Democrática) e PAN (Partido da Ação Nacional). Qual é o panorama para as próximas eleições presidenciais, em 2012?
As coisas não serão fáceis para o PRI. Em primeiro lugar porque [Felipe] Calderón vai fazer tudo para eliminar o candidato líder do PRI, Enrique Peña Nieto. No México, como disse Fernando Henrique Cardoso sobre o Brasil, um presidente não pode colocar um presidente no poder, mas pode vetar um presidente. Creio que lutar contra Calderón vai ser muito difícil.
Em segundo, porque os rivais de Peña Nieto no próprio PRI também vão fazer o que podem para destruí-lo. E ele tem muitos flancos vulneráveis. E, em terceiro, o PRI não tem outro bom candidato. A eleição de 2012 vai ser muito competitiva.

Como o sr. vê a questão do crescimento do narcotráfico no México?
A violência está aumentando desde que Calderón começou essa guerra, em 2006. O número de execuções cresceu enormemente. A guerra trouxe mais violência. A violência no México estava diminuindo desde o começo dos anos 90 até que Calderón chegou. Sou contra a guerra contra o narcotráfico do modo como está sendo feita. Foi um erro, uma improvisação, algo decidido por motivos políticos, e que trouxe enorme perda ao país. Já temos 25 mil mortos, um desgaste internacional terrível, sem nenhum resultado.

Como o sr. vê a lei do Estado do Arizona que fecha o cerco aos imigrantes ilegais?
Provavelmente alguns outros Estados dos EUA farão leis semelhantes. Temos de esperar para ver o que dizem os tribunais americanos sobre a constitucionalidade dessa lei.
Muitos, como eu, já pensávamos, há dez anos, que se não houvesse acordo entre EUA e México sobre o tema da imigração, algum dia ia haver uma reação muito violenta nos EUA contra a imigração ilegal. Infelizmente, é o que está acontecendo.
É urgente que Calderón, os presidentes da América Central e do Caribe, de Equador, Peru e Colômbia pressionem Obama para que envie uma reforma imigratória geral ao Congresso.

O que o sr. achou de Hugo Chávez ter exumado os restos mortais de Simón Bolívar? Até que ponto é uma maneira de desviar a atenção pública dos problemas do país?
A questão política é só parte da explicação. Chávez crê muito em magia negra, bruxaria, candomblé etc. E a exumação de restos é uma típica prática dessas artes e crenças. Elas o levaram a exumar os restos do libertador para tomar energia. Creio que ele pensa de verdade que isso pode funcionar.

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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 26 de julho de 2010.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Artigo

ANÁLISE SANÇÕES

China é a sombra por trás da Coreia do Norte

Medidas dos EUA são claro aviso de que não tolerarão novas ameaças à defesa e à segurança da Coreia do Sul


CENÁRIO DE INTERVENÇÃO MILITAR NÃO PODE SER IGNORADO, POIS PYONGYANG CRÊ QUE PEQUIM SAIRÁ EM SEU AUXÍLIO


ALEXANDRE RATSUO UEHARA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A decisão norte-americana de fazer exercícios militares no próximo dia 25 de julho em águas asiáticas servirá para sinalizar ao governo da Coreia do Norte o seu compromisso com a defesa e a segurança da Coreia do Sul. Esse sinal está direcionado não apenas para o atual ditador norte-coreano, Kim Jong-il. O governo de Washington também busca advertir o futuro governante do país, que deverá assumir em setembro deste ano.
Mas uma análise desse exercício deve levar em consideração também os interesses de outro importante ator internacional -a China. Ele é apontado como resposta ao afundamento do navio militar sul-coreano, em março passado, que teria sido causado por um torpedo norte-coreano.
Trata-se também de um alerta de Washington a Pyongyang. Apesar de todos os avanços obtidos no campo militar ao longo da primeira década do século 21, chegando à realização de testes com míssil de longo alcance e da explosão nuclear em outubro de 2006, novas aventuras militares de Pyongyang contra Seul não serão aceitas.
O grande problema das ações dos EUA é que elas não têm se mostrado efetivas para conter as ações norte-coreanas. Por outro lado, o anunciado exercício conjunto com forças sul-coreanas gera tensões com a China. Neste ano, Pequim deverá se consolidar como a segunda potência econômica mundial e tem buscado se afirmar como liderança regional.

RELAÇÕES BILATERAIS
Portanto, ações contra Pyongyang, de quem hoje Pequim é a principal parceira, afetam diretamente os interesses chineses. A reprovação dos exercícios militares por parte de Pequim não abalará, neste momento, as relações bilaterais com Washington, pois ambos os governos têm profundos interesses econômicos convergentes.
Atualmente, os EUA são o principal mercado para a China; em contrapartida, o governo chinês é um dos grandes credores do governo norte-americano.

FUTURO NÃO DESEJADO
Porém, as ações dos EUA têm se tornado pouco efetivas em relação à Coreia do Norte. E, caso ocorra nova ameaça por parte de Pyongyang, Washington poderá ter de recorrer a uma intervenção militar.
Apesar de indesejado, esse cenário não pode ser ignorado, pois Pyongyang não tem se intimidado e considera que o governo de Pequim sairá em seu auxílio. Por isso, é importante colocar que, cada vez mais, os americanos não podem ignorar os interesses da China, que, além de economicamente importante, é uma potência nuclear.


ALEXANDRE RATSUO UEHARA é pesquisador do Nupri/USP e professor no curso de relações internacionais das Faculdades Integradas Rio Branco (SP)

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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 22 de julho de 2010.

Curso

CURSO ESPECIAL

RELAÇÕES BRASIL – AMÉRICA DO SUL

EDIÇÃO

Dias 31 de julho, 7, 13 e 14 de agosto de 2010

(sexta, das 19h às 22h e sábados das 9h30 às 12h30)

PROGRAMAÇÃO

(confira a programação completa no site)

DIA 31/07 (sábado)

1. O regionalismo continental na política externa brasileira
2. Comércio
DIA 07/08 (sábado)

3. Investimento
DIA 13/08 (6ªf)

4. Infra-estrutura
5. A UNASUL e a integração regional

DIA 14/08 (sábado)

6. Energia

Ministrante: Mathias Seibel Luce

INVESTIMENTO: R$ 140,00 à vista (ou 2x R$ 75,00)

VAGAS LIMITADAS! AGENDE A SUA!

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quinta-feira, 15 de julho de 2010

Blog do Luis Nassif

15/07/2010

O Brasil e os vizinhos incômodos

Coluna Econômica - 15/07/2010

Nos próximos meses, o Brasil terá que administrar dois problemas sérios com dois vizinhos incômodos. O primeiro, o Equador; o segundo a Venezuela.


No caso do Equador, o problema é com a Ley dos Hidrocarburos, novo documento legal para a exploração do petróleo no país. Já foi enviado para a Assembléia Nacional e deverá ser votado em duas semanas. Por ele, os contratos de exploração de petróleo serão substituídos por contratos de prestação de serviços.


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A Petrobras tem uma pequena produção no Equador, herdada na compra da argentina Perez Companc. A empresa não tira mais que 15 mil barris diários. O contrato em vigor prevê pagamento de royalties. Com o petróleo acima de 50 dólares o barril, o estado equatoriano tem participação progressiva, que chega a quase 100% do adicional.


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No ano passado, as empresas petrolíferas assinaram contratos prevendo a transição. Inclusive especificando condições para o ressarcimento, em caso de desistência sua. A indenização será pelo valor não depreciado dos ativos.


Além da Petrobras, atuam no país a Repsol e duas companhias chinesas.


Na verdade, desde os anos 70 o Equador deixou de interessar à Petrobras. Nas explorações atuais não foi colocado recurso de acionista brasileiro.


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O problema maior é o potencial de mal estar nas relações bilaterais. Dos estados da região, o Equador é aquele que tem relações menos próximas com o Brasil. Quando ocorreram problemas com a Hidrelétrica construída pela Odebrecht, o Equador questionou em cortes internacionais o CCR (Convênio de Crédito Recíproco). Trata-se de um mecanismo essencial para permitir ao BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) financiar obras de empresas brasileiras na região. Por ele, os empréstimos a governos estrangeiros são garantidos pela receita de exportações do país, negociadas em uma câmara de compensação.


O país resolveu os problemas com a Odebrecht mas permaneceu a pendência sobre os CCRs.


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Problemas mais sérios surgirão na frente venezuelana. Não propriamente demandas entre os dois países, mas conflitos latentes internos, que parecem caminhar para uma eclosão política grave.


A Venezuela é o maior parceiro comercial do Brasil no continente; tem um PIB similar ao da Argentina.


O país está perto do caos. Em um ano em que o continente está nadando de braçada, o PIB venezuelano deverá cair 4,5%. Apenas com a redução da exploração do petróleo, o país deverá perder este ano US$ 25,5 bilhões.


A exploração de petróleo consiste em investimentos em prospecção e muito mais na exploração e na manutenção da produção. Se se deixa de investir, perde-se em média 10% da produção por ano.


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De 2003 para cá, a produção venezuelana baixou de 3,3 milhões para 2,3 milhões de barris dia. Na Venezuela, praticamente todos os bens de consumo são importados com dinheiro do petróleo.


Na terça-feira passada os jornais venezuelanos anunciava, em grandes manchetes, a chegada de um navio do Brasil, com carga de açúcar.


Faltar equipamentos para petróleo é uma coisa. Agora, a desarticulação da economia venezuelana está chegando nos bens de consumo básicos.

www.luisnassif.com.br

terça-feira, 6 de julho de 2010

Erros europeus afastaram a Turquia

Posição de Ancara em relação ao programa nuclear iraniano é explicada, em boa medida, pelo fracasso da União Europeia em produzir uma política externa coerente para o país

04 de julho de 2010 | 0h 00
Joschka Fischer, The Guardian - O Estado de S.Paulo

O "não" da Turquia às novas sanções contra o Irã aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU (posição que também teve o Brasil) revela dramaticamente toda a dimensão do distanciamento de Ancara em relação ao Ocidente. Conforme muitos comentaristas indagaram, estaremos presenciando as consequências da chamada política externa "neo-otomana" do governo do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), que supostamente pretende mudar de lado e voltar às raízes islâmicas orientais?

Acredito que esse temor é exagerado, até mesmo inadequado. E, mesmo que a situação fosse essa, seria mais por uma profecia autorrealizada da parte do Ocidente do que pela política da Turquia.

De fato, a política externa turca - que procura resolver os conflitos com e entre os países vizinhos, e o ativo envolvimento turco nesse sentido - não está absolutamente em conflito com os interesses ocidentais. Ao contrário. Mas o Ocidente (e a Europa em particular) finalmente terão de levar a Turquia a sério como parceira - e deixar de considerá-la um cliente do Ocidente.

A Turquia é e deve ser membro do G-20 porque com sua jovem população em forte crescimento formará um país muito forte do ponto de vista econômico, no século 21. Mesmo hoje, a imagem da Turquia de "doente da Europa" não é mais adequada.

Desastre turco-europeu. Quando, depois da decisão da ONU, o secretário da Defesa dos Estados Unidos, Robert Gates, criticou severamente os europeus por terem contribuído para esse distanciamento com seu comportamento em relação à Turquia, sua franqueza nada diplomática provocou certa agitação em Paris e em Berlim. Mas Gates fez a coisa certa.

Desde a mudança de governo de Jacques Chirac para Nicolas Sarkozy, na França, e de Gerhard Schroeder para Angela Merkel, na Alemanha, a Turquia foi enganada e marginalizada pela União Europeia (UE). Na realidade, no caso específico de Chipre, a União Europeia não chegou a romper os compromissos assumidos anteriormente com a Turquia, nem a mudar unilateralmente as normas acordadas em conjunto. E, embora os europeus tenham mantido formalmente sua decisão de dar início às negociações de ingresso com a Turquia, pouco fizeram para levar adiante a sua causa.

Somente agora, quando o desastre das relações entre a Turquia e a Europa está se tornando patente, a União Europeia de repente está disposta a abrir um novo capítulo nas negociações (o que, aliás, mostra claramente que o impasse teve uma motivação política).

Nunca será bastante afirmar que a Turquia ocupa uma posição geopolítica extremamente sensível, particularmente no que se refere à segurança da Europa. O Mediterrâneo oriental, o Mar Egeu, os Bálcãs ocidentais, a região do Mar Cáspio e o Cáucaso meridional, a Ásia Central e o Oriente Médio são áreas em que o Ocidente pouco ou nada conseguirá sem o apoio da Turquia. E isso é válido não apenas no que se refere à política da segurança, mas também à política energética, se buscamos alternativas à crescente dependência da Europa do fornecimento de energia da Rússia.

Aliados improváveis. O Ocidente, e a Europa em particular, não pode realmente distanciar-se da Turquia, considerando seus próprios interesses, mas objetivamente, é exatamente esse tipo de distanciamento provocado pela política europeia em relação à Turquia nos últimos anos.

A segurança da Europa no século 21 será determinada em um grau significativo por sua proximidade com o Sudeste - exatamente onde a Turquia é crucial para a segurança da Europa agora, e cada vez mais no futuro. Mas em vez de aproximar ao máximo a Turquia da Europa e do Ocidente, a política europeia a está jogando nos braços da Rússia e do Irã.

É uma política irônica, absurda e míope ao mesmo tempo. Durante séculos, a Rússia, o Irã e a Turquia foram rivais regionais, jamais aliados. No entanto, a cegueira política da Europa parece menosprezar esse fato.

Evidentemente, a Turquia também depende em grande parte de sua integração com o Ocidente. Se perder isso, estará drasticamente enfraquecida em sua posição diante dos possíveis parceiros regionais (e rivais), apesar de sua localização geopolítica ideal.

O "não" da Turquia às novas sanções internacionais contra o Irã muito provavelmente se mostrará um grave erro, a não ser que o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, consiga voltar atrás na questão da política nuclear iraniana. Essa possibilidade, entretanto, é extremamente improvável.

Além disso, no momento em que o confronto entre Israel e a Turquia fortalece as forças radicais do Oriente Médio, o que é que a diplomacia europeia (tanto em Bruxelas quanto nas capitais europeias) está esperando? O Ocidente, e mesmo Israel e a Turquia, muito certamente não poderão permitir uma ruptura permanente entre os dois países - a não ser que se deseje que a região continue no caminho de uma desestabilização duradoura. Está mais do que na hora de a Europa começar a agir.

Pior ainda, enquanto o pouco caso da Europa é visível em primeiro lugar na questão da Turquia e do Oriente Médio, essa situação lamentável não se limita a esse contexto. Ela ocorre também com o Cáucaso Meridional, a Ásia Central, onde a Europa, com a aprovação dos países que são fornecedores menores nessa região, deveria procurar firmemente seus interesses na área de energia e afirmar-se em relação à Rússia, bem como à Ucrânia, onde a UE também deveria estar seriamente envolvida.

Muitos dos novos desdobramentos foram provocados em toda essa região pela crise econômica global, e um novo parceiro, a China (que sempre planeja no longo prazo), entrou no cenário geopolítico.

A Europa corre o risco de esgotar o seu tempo, mesmo com seus próprios vizinhos, porque falta em todos esses países uma ativa política externa europeia e um forte compromisso da parte da UE. Ou, como disse Mikhail Gorbachev, o maior estadista russo das últimas décadas do século 20: "A vida pune os que chegam tarde demais." / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

É EX-CHANCELER DA ALEMANHA

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Publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 04 de julho de 2010.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Um mundo em movimento crescente

Talvez não haja uma força na vida tão onipresente, e tão subestimada, do que a migração, que está reordenando o globo

03 de julho de 2010 | 0h 00
Jason Deparle, The New York Times - O Estado de S.Paulo

A arenga de Gordon Brown sobre uma eleitora "intolerante" acelerou sua saída do cargo de primeiro-ministro britânico. O que o tirou do sério? A queixa que ela fez sobre imigrantes, Quando um terremoto abalou o Haiti, os dominicanos enviaram soldados e os americanos enviaram navios - para desencorajar imigrantes potenciais. O congressista que gritou "Você mente!" ao presidente Barack Obama estava transtornado com a questão dos imigrantes.

Talvez não haja força na vida moderna tão onipresente e contudo subestimada que a migração global, esse veículo de destruição criativa que está reordenando cada vez mais o mundo. Subestimada? Um cético poderia perfeitamente questionar essa afirmação, considerando a frequência com que o tópico ganha as notícias e que as notícias provocam dissensões. Afinal, a campanha do Arizona contra imigrantes ilegais, codificada em lei em abril, desencadeou debates acalorados de Melbourne a Madri. Mas a migração também molda a paisagem por baixo de eventos aparentemente não relacionados às manchetes. É uma história por trás da história, uma maré complicadora, em questões tão distintas como as disputas por bônus escolares e os esforços para isolar o Irã.

Mesmo pessoas que ganham a vida estudando a migração têm dificuldade de apreender todos seus efeitos. "Politicamente, socialmente, economicamente e culturalmente, a migração aflora por toda parte", disse James F. Hollifield, cientista político da Universidade Metodista do Sul. "Com frequência não a reconhecemos." Um âmbito em que a migração causa efeitos importantes ainda que em grande parte subestimados é o do financiamento escolar.

Cientistas políticos descobriram que eleitores brancos são mais propensos a se opor aos planos de gastos quando percebem que os principais beneficiários serão filhos de imigrantes (em especial, de imigrantes ilegais). O resultado, é claro, afeta todas as crianças, imigrantes ou de décima geração.

"Quando se tem uma maior diversidade, enfraquece-se o apoio ao bem comum", disse Dowell Myers, um demógrafo da Universidade do Sul da Califórnia. Myers estudou a Proposição 55, uma iniciativa eleitoral de 2004 na Califórnia que tentava obter US$ 12,3 bilhões em vendas de bônus para aliviar a superlotação e modernizar escolas.

Publicamente, a maioria dos opositores enquadrou suas preocupações em termos econômicos, dizendo que o governo desperdiçava dinheiro e assumia dívidas insustentáveis. Ainda assim, o ódio contra a imigração ilegal foi, como um oponente colocou, o "elefante na sala de visitas". A superlotação escolar, ele escreveu numa carta a The Riverside Press Enterprise, "é causada exclusivamente pela estúpida política de fronteiras abertas dos EUA". Myers descobriu que, descontando todas as outras coisas (como opiniões políticas contrárias), os eleitores que viam a imigração como um ônus foram aproximadamente 9 pontos porcentuais mais propensos a se opor à medida que os que consideraram a imigração um benefício. "Esse é um grande efeito - foi quase suficiente para derrubá-la", disse ele. A medida foi aprovada por meros 50% dos votos.

Terceira onda. Os teóricos às vezes chamam o movimento de pessoas de a terceira onda da globalização, após o movimento de bens (o comércio) e o movimento de dinheiro (as finanças) que começaram no século anterior. Mas comércio e finanças seguem normas globais e são regidos por instituições globais: a Organização Mundial de Comércio, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional. Não há nenhum grupo paralelo com "imigração" no nome. A forma mais pessoal e perigosa de movimento é a mais desregulada. Os Estados fazem (e com frequência ignoram) suas regras, decidindo quem entra, quanto tempo fica e de que direitos desfruta.

Apesar de o comércio e as finanças globais serem disruptivos - alguns diriam que tanto quanto a imigração - eles são disruptivos de maneiras menos visíveis. Uma saia fabricada no México pode custar o emprego de um trabalhador americano. Um trabalhador do México pode mudar para a casa ao lado, mandar seus filhos à escola pública e é preciso falar com ele em castelhano.

Uma razão para a imigração parecer tão potente é que ela surgiu inesperadamente. Ainda nos anos 70, a imigração parecia tão pouco importante que o Departamento do Censo dos EUA decidiu parar de perguntar às pessoas onde seus pais tinham nascido. Agora, um quarto de todos os moradores dos EUA com menos de 18 anos são imigrantes ou filhos de imigrantes.

A ONU estima que existem 214 milhões de migrantes em todo o mundo, um aumento de 37% em duas décadas.

Suas fileiras cresceram 41% na Europa e 80% na América do Norte. "Há mais mobilidade neste momento do que em qualquer outra época da história mundial", disse Gary P. Freeman, um cientista político da Universidade do Texas.

Os mais famosos países de origem de migrantes na Europa - Irlanda, Itália, Grécia, Espanha - de repente se tornaram destinos de migrantes. A Irlanda elegeu seu primeiro prefeito negro em 2007, um homem nascido na Nigéria.

Como herdeiros de um passado imigrante, os americanos podem levar vantagem numa era de migrantes. Por mais contenciosa que a questão seja aqui, a capacidade dos americanos de absorver imigrantes continua causando inveja em muitos europeus (incluindo os que não se inclinam a invejar os americanos). Mas os desafios de hoje diferem dos daquele passado (mitificado). Pelo menos cinco diferenças separam essas eras e ampliam os efeitos da migração.

A primeira é o alcance global da migração. Os movimentos do século 19 eram mais transatlânticos. Agora, nepaleses suprem fábricas sul-coreanas e mongóis fazem trabalhos desgastantes em Praga. As economias do Golfo Pérsico entrariam em colapso sem os exércitos de trabalhadores de fora. Mesmo nos EUA, os imigrantes estão espalhados por dezenas de "novas portas de entrada" não acostumadas a eles, de Orlando a Salt Lake City.

Um segundo traço diferenciador é o dinheiro envolvido, que não só sustenta as famílias deixadas para trás como sustenta economias nacionais. Os migrantes enviaram para casa US$ 317 bilhões no ano passado - três vezes a ajuda estrangeira mundial total. Em pelo menos sete países, as remessas de fora representam mais de 25% de seu Produto Interno Bruto.

Um terceiro fator que aumenta o impacto da migração é o aumento relativo do contingente feminino: quase metade dos migrantes mundiais hoje são mulheres, e muitas deixaram seus filhos para trás. Seu surgimento como arrimos de família está alterando a dinâmica familiar em todo o mundo em desenvolvimento. A migração fortalece algumas, mas coloca outras em risco, e o tráfico sexual é hoje um problema mundial.

A tecnologia introduz uma quarta diferença com o passado: as massas acotoveladas chegaram à Ilha de Ellis sem celulares ou webcams. Agora, uma governanta em Manhattan pode falar com seu filho em Zacatecas, votar nas eleições mexicanas e assistir programas de TV mexicanos.

O "transnacionalismo" é um conforto, mas também um problema para os que acham que ele impede a integração. Numa era de jihad global, pode ser também uma ameaça à segurança. O imigrante paquistanês que reconheceu sua culpa em uma tentativa de atentado a bomba em Times Square disse que as lições jihadistas chegaram a ele do Iêmen, via internet.

Ao menos um outro traço amplia o impacto da migração moderna: a expectativa de que os governos a controlarão. Nos EUA, durante boa parte do século 19, não houve nenhuma barreira legal à entrada. Agora, espera-se que governos ocidentais mantenham o turismo e comércio fluindo e respeitem direitos étnicos enquanto fecham fronteiras. Seus fracassos - flagrantes, ainda que talvez inevitáveis - enfraquecem a fé mais geral na competência federal.

"Isso basicamente diz às pessoas que o governo não consegue fazer seu serviço", disse Demetri Papadementriou, um cofundador do Instituto de Política de Migração, um organização de pesquisa em Washington. "Ela cria a retórica anti-governo que vemos, e a raiva que as pessoas estão sentindo." Mas países ricos, em fase de envelhecimento, precisam de trabalhadores. Pessoas em países pobres precisam de empregos. E o aumento da desigualdade global implica que os migrantes têm mais do que nunca a ganhar procurando trabalho no exterior. / TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

É ESCRITOR