terça-feira, 22 de junho de 2010

Como a Turquia desistiu de sua relação com o Ocidente

Erdogan buscou a integração com a União Europeia, mas Alemanha e França não deixaram; hoje ele dá o troco

Bernhard Zand - O Estado de S.Paulo

DER SPIEGEL

Na cúpula da União Europeia (UE) em Copenhague, em dezembro de 2002, o então chanceler alemão, Gerhard Schroeder, e o presidente francês, Jacques Chirac, estavam sentados numa sala com Recep Tayyip Erdogan, um recém-chegado na Europa. O alemão e o francês tinham más notícias para o homem, que acabava de alcançar uma vitória eleitoral histórica na Turquia.

O premiê turco esperava receber uma data concreta, 15 anos após a Turquia apresentar seu primeiro pedido formal para o início das negociações sobre o acesso de seu país ao bloco europeu. Era o reforço que Erdogan buscava para recuperar a Turquia. Mas ele soube de Schroeder que a UE não estava preparada para começar aquelas negociações ainda, e Erdogan teria de esperar mais um pouco.

Erdogan sentou-se em sua cadeira e disse: "Hop hop!" Chirac não compreendeu a expressão turca, que se traduz numa combinação de "espere aí" e "vocês devem estar malucos". Mas ele havia servido como prefeito de Paris por tempo suficiente para reconhecer que aquele homem tinha o pavio muito curto e não aceitava bem uma decepção.

Os estadistas europeus, ele informou a seu colega turco, tinham suas diferenças. Mas eles também haviam estabelecido maneiras de discutir essas diferenças. Erdogan não disse nada. Não era um bom começo.

Distância de Israel. Agora, sete anos depois, Erdogan realmente recuperou a Turquia. Ele incomodou todos os que um dia ousaram lhe tratar como um simplório religioso. Colocou contra a parede os antes todo-poderosos militares turcos, desmoralizou o establishment republicano e transformou seu país sobre o Bósforo, antes conhecido por seus golpes e crises, num "tigre" anatólio. Enquanto a vizinha Grécia enfrenta uma bancarrota nacional, a economia turca deve crescer mais de 5% este ano.

Ao mesmo tempo, o país está assumindo um papel que a Turquia moderna nunca desempenhou: o de uma potência regional ruidosa e arrogante que está provocando um clamor internacional ao desprezar um princípio fundamental de sua política externa. É uma mudança de curso histórica. "Os turcos sempre seguiram numa única direção", disse Mustafa Kemal Ataturk, o fundador da república turca. "Para o Ocidente." Agora, porém, após sete anos com Erdogan, a Turquia está mudando sua direção para o Leste.

O indício mais óbvio dessa mudança é sua relação com Israel. Nos anos 40, a Turquia foi um refúgio para judeus perseguidos da Europa e, em 1949, foi o primeiro país islâmico a reconhecer o Estado judeu. Trata-se de uma aliança de conveniência e valores que as elites seculares de ambos os países sustentaram, a qual existe há quase 60 anos.

Mas a aliança desfez-se há duas semanas, após meses de provocações mútuas e o incidente sangrento envolvendo a flotilha ao largo da costa israelense. Erdogan acusou Israel de "terrorismo de Estado", retirou seu embaixador e afirmou que o mundo "agora percebe a suástica e a Estrela de Davi juntas".

A reviravolta reflete-se também na relação com o Irã, país que Ancara via com suspeita desde a Revolução Islâmica de 1979. Uma placa que foi colocada na fronteira turco-iraniana em 1979 diz: "A Turquia é um Estado secular." É uma declaração da oposição da Turquia à teocracia no vizinho Irã.

Mas no dia 9 o embaixador turco ergueu a mão no Conselho de Segurança da ONU e votou contra o pacote de sanções com o qual Washington, Londres, Paris e Berlim - e até Moscou e Pequim - esperam barrar o polêmico programa nuclear do Irã.

O Ocidente está chocado. Um país que cobriu o flanco sudeste da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) por 60 anos e ficou ao lado dos Estados Unidos e da Europa, com o segundo maior exército da Aliança - da Guerra da Coreia à do Afeganistão - é, de repente, um amigo dos mulás? O Departamento de Estado dos Estados Unidos chama isso de um "desapontamento", enquanto alguns em Israel, Estados Unidos e Alemanha já estão prevendo um novo "eixo do mal".

"Empurrado" à leste. De quem é a culpa pela virada da Turquia? De Erdogan? De Israel? Dos europeus? Quem perdeu a Turquia? Se o país encavalado no Bósforo parece estar se movendo para leste, diz o secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, isso "se deve ao fato de que ele foi repetidamente empurrado por alguns na Europa que se recusam a dar à Turquia o tipo de vínculo orgânico com o Ocidente que ela tradicionalmente almejou".

O argumento de Gates é difícil de refutar. No Acordo de Associação de 1963, os países da UE ofereceram à Turquia uma clara perspectiva de integração e Ancara fez seu primeiro pedido em 1987. Mas, mesmo depois de as negociações começarem, em 2005, Bruxelas continuou criando obstáculos para a Turquia enquanto países do antigo bloco oriental eram aceitos um após outro. Erdogan continuou se aferrando, contudo, à perspectiva de integração na UE. E com esse trunfo na mão, reformou seu país como nenhum outro premiê turco havia feito antes. Ele assumiu riscos, abrandou as relações com os curdos e, em geral, tentou impressionar os europeus.

Estava determinado a entrar na história como o turco que trouxe seu país para o "clube cristão". Mas aí, a meio caminho entre a chegada ao cargo da chanceler alemã Angela Merkel, em 2005, e a do presidente francês Nicolas Sarkozy, em 2007, o entusiasmo de Erdogan arrefeceu. Se há uma questão em que aqueles dois líderes concordam é na sua oposição à integração da Turquia na UE.

Erdogan compreende que não tem uma chance na Europa neste momento e está redirecionando sua energia para o leste. Não é uma maneira particularmente magistral de aliviar a frustração política, mas tampouco é surpreendente. / TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

É REPÓRTER ESPECIALIZADO NA POLÍTICA DO ORIENTE MÉDIO

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