segunda-feira, 19 de abril de 2010

Diplomacia

O diplomata que levou Geisel aos comunistas

Ovídio Melo fez a ditadura reconhecer a independência e o novo governo de Angola

Roberto Simon


Aos 84 anos, Ovídio de Andrade Melo vive a rotina típica de um aposentado do Leblon. Acorda cedo para ler jornal, caminha após a sesta, cuida da diabete. Mas a morosidade da velhice esconde um passado tumultuado. Melo encarnou o que foi talvez o episódio mais polêmico da história do Itamaraty, quando, em 1975, o Brasil do general Ernesto Geisel reconheceu a independência de Angola e seu novo governo socialista, que recebia armas da URSS e tropas de Cuba.

Fluminense de Barra do Piraí, Melo recebeu do chanceler Azeredo da Silveira, no início de 1975,o cargo de representante especial do Brasil em Angola. Ele deveria coordenar a posição brasileira diante da iminente independência
angolana e a formação do novo governo.

Em busca deumanova era nas relações com a África,Geisel queria provar queo Brasil rompera a solidariedade com o colonialismo português. Angola seria o
grande exemplo.

Quando Melo desembarcou em Luanda, Portugal havia acabado de se comprometer em sair de Angola até o dia 11 de novembro daquele ano. Antes da retirada, haveria uma eleição – que logo descambou para guerra – entre três facções: o Movimento
Popular de Libertação de Angola (MPLA), ligado a Moscou e Cuba; a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), apoiada por EUA, China e Zaire;
e a União Nacional para a Independência Total de Angola(Unita), aliada à África do Sul.

“Deveríamos manter uma posição neutra e, no dia 11, ‘dar as batatas’ ao vencedor”, lembra Melo.Mas o cronograma ruiu, os três grupos entraram em guerra
e a África do Sul invadiu Angola. Com o país em convulsão, o representante
do governo Geisel viu, no dia da independência, a bandeira portuguesa no Palácio Nacional de Luanda dar lugar à rubro-negra, com foice e martelo
estilizados, do MPLA.

Em nome do pragmatismo, o Itamaraty ignorou a coloração ideológica do novo governo e reconheceu o MPLA domédico António Agostinho Neto às 20h01
de Brasília (com o fuso horário, no primeiro minuto do dia 11 em
Angola). O Brasil era o primeiro país a ter relações com Luanda.
Melo era uma das poucas autoridades não africanas na plateia da cerimônia de posse, sentado ao lado de um russo e um iugoslavo.

O avião com as delegações estrangeiras não conseguiu pousar na capital a tempo –o aeroporto estava sendo usado para desembarcar tropas cubanas.

“Não tinha comida no país, mas fizeram um bolo com o mapa de Angola para Agostinho cortar.

Ele disse ‘não quero partir o país’. E o representante iugoslavo gritou‘
quero ficar como pedaço de Cabinda’! (enclave rico em
petróleo)”, relembra, aos risos.

‘Pró-MPLA’. Contraditório na aparência, o reconhecimento de Angola pela ditadura anticomunista brasileira enfureceu a “linha-dura” dos militares, setores conservadores do País e a diplomaciaamericana.
Melo foi acusado de ter ludibriado o governo para reconhecer a facção aliada a
Moscou.

“O Ovídio era totalmente pró-MPLA. Foi ele o responsável pelo reconhecimento”,
diz o jornalista Fernando Câmara Cascudo(filho do folclorista). Ele trabalhou
para o maior jornal do país, da FNLA. Ao diário, incorporou slogans da ditadura brasileira: “Angola, ame-a ou deixe-a.”(Mais informações nesta página.)

Melo veste a carapuça de “pró-MPLA”. Ele diz que, em agosto, quando Agostinho tomou o controle de Luanda,o grupo “já era o governo”.“É lógico que teríamos relações privilegiadas com eles.”

Recentemente, Jerry Dávila, historiador da Universidade da Carolina do Norte, descobriu na Fundação Getúlio Vargas(FGV)do Rio um documento sobre a saga do Brasil em Angola. Trata-se de um telegrama no qual Ítalo Zappa, chefe de Melo e arquiteto da estratégia para reconhecer as ex-colônias portuguesas,exortava
o chanceler a desistir da empreitada angolana.

Zappa temia a piora da violência – a missão brasileira, a única ocidental em funcionamento, já havia sido metralhada. Em seis meses de Luanda, Melo, que já era franzino, perdera dez quilos. Até a motoneta que ele comprou para a embaixada, único veículo capaz de transitar por Luanda, foi roubada.

"Contra a opinião do ministro Ovídio Melo, sou levado, por tudo que vi e ouvi (em Luanda), a solicitar a Vossência a retirada imediata dos funcionários", dizia a mensagem, escrita a três meses da independência. Silveira recusou o pedido de Zappa.

"Só soube desse telegrama pelo professor Dávila", diz Melo. "Zappa estava com medo e desistiu. Queria fechar a representação e deixar dois portugueses lá, sendo um salazarista. Mas eu não. E Geisel foi muito firme."

A pressão sobre o brasileiro cresceu dias após a independência, quando o então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, anunciou ao mundo que Fidel Castro estava enviando suas tropas de elite a Luanda. Era o início de Operação Carlota, que buscava conter o avanço dos soldados sul-africanos em Angola.
Melo não havia informado o Itamaraty sobre os soldados de Fidel e, após meses sem notícias do Brasil, ouviu o telégrafo apitar. Saiu um texto curto: "Onde estão os cubanos?"

As tropas de Cuba começaram a chegar no dia da independência, garante Melo.
"Poderia haver instrutores e espiões antes. Mas não na capital, onde eu e meus funcionários estávamos." O assunto, justifica, era "secretíssimo" para Agostinho e ele não tinha acesso a esse tipo de informação.

O historiador Dávila desconfia da versão do brasileiro. Para ele, Melo e Zappa sabiam dos instrutores cubanos. "Mas isso era tido como algo necessário para a sobrevivência do MPLA."

Volta.
Um mês após a independência angolana, Melo foi recebido no Brasil com um gelo do chanceler Silveira e uma promessa de promoção a embaixador que só seria cumprida 11 anos depois, com a redemocratização. "Silveira preferiu promover um diplomata ligado ao SNI (Serviço Nacional de Informações)." Melo ainda recebeu alguns indesejáveis avisos de colegas. "A Marinha quer te matar", disse um. "Você vai ser preso", alertou outro.

A fama de esquerdista não era nova. Com o golpe de 1964, Melo recebera um questionário com a pergunta: "Dizem que o senhor é esquerdista. A quem o senhor atribui essa acusação?" "O Itamaraty era aristocrático, metido a sebo. Nós (Melo e Zappa) éramos democráticos. É claro que estávamos à esquerda daquela gente", diz ele hoje.

Antes de Angola, Melo já havia passado por postos de prestígio. Foi representante na ONU para assuntos de descolonização, o que lhe rendeu as credenciais para ir a Luanda, e serviu como cônsul-geral em Londres - onde foi o primeiro chefe de um jovem e "habilidoso" diplomata recém-saído do Instituto Rio Branco, um tal de Celso Amorim.

Mas, poucos meses após Geisel cumprir sua promessa de iniciar uma nova era nas relações com a África, Melo foi isolado com um posto na Tailândia. "Eu era problema e o Itamaraty me queria longe. "Em seguida, serviria na Jamaica, até se refugiar, aposentado, no Leblon.

Hoje, questionado se retornou a Angola depois de 1975, Melo dá com os braços. "Não teria mais nada a fazer por lá.

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Publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 18 de abril de 2010.

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