quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Português: silepse

Pasquale Cipro Neto

"Sua Excelência não ficou nada corado..."


"Essa família é muito unida / e também muito ouriçada, / brigam por qualquer razão, mas acabam pedindo perdão..."

NO RECENTE vestibular da Fuvest, os candidatos tiveram de responder à seguinte questão: "Considerando que "silepse é a concordância que se faz não com a forma gramatical das palavras, mas com seu sentido, com a ideia que elas representam", indique o fragmento em que essa figura de linguagem se manifesta".
Como às vezes faço, vou poupar o leitor das alternativas da questão. Vamos direto ao ponto, ou seja, à gloriosa "silepse". Cá entre nós, a palavrinha é enjoadinha e assusta um pouco, mas, se o candidato ler com atenção o enunciado do teste, verá que a definição de "silepse" dada pela banca é mais do que suficiente para resolver a questão.
Vamos a um exemplo clássico dessa figura: "Sua Excelência não ficou nem um pouco corado quando disse que guardou o dinheiro na meia porque...". Nesse caso, o adjetivo "corado" (do gênero masculino) não concorda com a expressão de tratamento "Sua Excelência" (feminina), mas com o ser que ela representa (um homem). Temos aí a "silepse de gênero", já que a alteração na concordância se deu justamente no gênero do adjetivo.
Vejamos agora outro exemplo, do início da canção que abre o programa "A Grande Família", da TV Globo: "Essa família é muito unida / e também muito ouriçada, / brigam por qualquer razão, mas acabam pedindo perdão...". O caro leitor percebeu onde está a silepse? Está em "brigam" e "acabam", flexões da terceira pessoa do plural do presente do indicativo de "brigar" e "acabar", respectivamente.
A que termo se referem essas formas verbais? Ao termo "família". Então essa família "brigam"? Não. A família briga; os membros da família brigam. Então a letra está "errada"? Nem de longe. Como se vê, as duas formas verbais citadas estão um tanto distantes do sujeito ("essa família"). Esse distanciamento do verbo (em relação ao sujeito) faz o falante, quase instintivamente, tentar recuperar o sentido do sujeito, que, no caso, é de plural ("família" = "familiares", ou seja, duas ou mais pessoas).
No exemplo em questão, ocorre "silepse de número", já que a alteração na concordância se deu no número (singular/ plural) das flexões verbais ("briga" e "acaba", do singular, são substituídas por "brigam" e "acabam", do plural).
Antes que me esqueça e que alguém pergunte, casos como "O pessoal chegaram" ou "A turma saíram", comuns na oralidade de muitas regiões do país, explicam-se pelo mesmo processo que acabamos de ver, mas não ocorrem nas modalidades formais da língua. E por quê? Porque nessas modalidades, quando o verbo está ao lado do sujeito (ou perto dele), a concordância verificada é a "normal", isto é, com o verbo no singular.
No caso da questão da Fuvest, baseada numa crônica do genial Mário Quintana, a silepse se dá nesta passagem: "...tanto assim que fomos alojados os do meu grupo num casarão...". A silepse está em "fomos", flexão da primeira pessoa do plural ("nós") do pretérito perfeito do indicativo do verbo "ser".
A forma verbal "fomos" não concorda com a expressão "os do meu grupo", que, pelas vias "normais", exigiria o verbo na terceira do plural ("foram alojados os do meu grupo"; "os do meu grupo foram alojados"). Fez-se a concordância com a ideia, com o sentido (o narrador se inclui entre os que foram alojados).
Nesse caso, ocorre "silepse de pessoa", já que a alteração na concordância se deu na substituição da terceira pessoa do plural ("foram") pela primeira ("fomos"). É isso.

inculta@uol.com.br

Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, no dia 17 de dezembro de 2009, p. C2.

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