terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Amorim e Joaquim Nabuco

Conferência na Academia Brasileira de Letras em homenagem ao centenário do falecimento do Embaixador Joaquim Nabuco.
Rio de Janeiro, 18/01/2010

Por Celso Amorim

AS DUAS VIDAS DE JOAQUIM NABUCO: O REFORMADOR E O DIPLOMATA


Sinto-me honrado em dirigir-me à Academia Brasileira de Letras na ocasião em que se homenageia o centenário do falecimento de um dos fundadores da instituição que serve de casa à literatura e à cultura brasileiras. Primeiro Secretário-Geral da Academia, o Embaixador Joaquim Nabuco foi também, ao lado de dois outros imortais, o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa, um dos fundadores da moderna diplomacia brasileira.
Inicio esta palestra com a confissão de uma certa perplexidade, cuja superação exigirá reflexão mais extensa e profunda do que aquela que pude fazer. O título dessa conferência foi dado há cerca de três semanas. Caso tivesse de escolher um título hoje, teria optado por algo distinto. Muito provavelmente seria “O Enigma Nabuco”, ainda que isso significasse um plágio mais ou menos consciente. É que o que mais me impressionou nesse convívio concentrado com alguns aspectos da obra e da biografia de Joaquim Nabuco foi a complexidade do personagem, insuscetível de definições simplistas. Para um observador contemporâneo, mais afeito às doutrinas e teorias do século XX, Nabuco aparece como um pensador que associa atitudes absolutamente modernas, com posições que, à primeira vista, ao menos, seriam “datadas”. Nada mais atual, por exemplo, que o impulso reformador em busca de justiça social que anima Nabuco. O mesmo pode-se dizer da acuidade psicológica de sua análise, não só sobre o político, mas sobre o homem Balmaceda. Sua percepção de que o futuro do Brasil está intimamente vinculado ao do conjunto da América do Sul não poderia ser mais contemporânea.
Tudo isso contrasta com sua defesa de um regime controlado por uma pequena elite (que, de resto, ele criticava), com seu temor das consequências de lideranças populares (ou populistas), tanto na França quanto no Chile (e obviamente no Brasil). Seu apego a autores que, diferentemente de outros do mesmo século, são totalmente desconhecidos de um estudante mediano de Ciência Política ou mesmo de História dos dias de hoje – literatos franceses e tratadistas ingleses, no dizer irônico de José Murilo de Carvalho – é igualmente desconcertante. Por outro lado, é justamente esse convívio de contrários que torna a personalidade de Joaquim Nabuco objeto do fascínio de tantos estudiosos. É também o que a torna absolutamente moderna, quase existencialista, no sentido filosófico do termo. Como um personagem de Sartre, Nabuco é permanentemente levado a fazer escolhas: entre a sua classe e a sua causa, entre permanecer fiel às suas convicções monárquicas ou servir à pátria mesmo que sob regime republicano. É evidente a angústia – sentimento tão sartreano – de Nabuco diante da necessidade de ter de optar entre os seus ideais abolicionistas e os interesses do governo brasileiro da época, o que fica patente nas repetidas justificativas da decisão de dirigir-se ao Papa, em sentido contrário ao da diplomacia do Império.
Enigma pressupõe a possibilidade, ao menos em tese, de decifração. Não me atreveria a tentá-la em relação a personalidade tão rica, tão complexa e, ademais, tão estudada. Chama atenção especialmente a contradição entre o sentimento antiescravista que acompanha Nabuco desde a juventude com a afinidade – que tem algo de racional, algo de sentimental – com um regime político cuja base era a própria escravidão.
Diante de tantas escolhas, Nabuco não renunciou a sua liberdade. Nem pretendeu sufocar um lado de sua alma. Em outras palavras, não recorreu à “má-fé”, que o teria levado a compor um personagem talvez coerente, mas desinteressante, além de inautêntico. O enigma Nabuco é também a essência de sua grandeza.

Nabuco, homem de seu tempo
O período em que Nabuco se forjou como homem público, do final do século XIX até a primeira década do século XX, foi extremamente marcante na vida brasileira. San Tiago Dantas sintetizou com precisão o espírito daquela época: “Um contraste singular reinava entre a economia e a inteligência, entre a situação de debilidade material do país e a força com que irrompiam os sinais de uma nova mentalidade. Nos mesmos anos, por um desses descompassos que fazem a maravilha do espectador, elevava-se a um nível, até então inatingido, a vida intelectual do país”.
Em um sentido amplo, os intelectuais e políticos daquela etapa – mesmo considerando a variedade de visões entre eles – compõem a geração fundadora da República brasileira. A própria noção de nacionalidade ganhava densidade intelectual naquele período de forte questionamento e elaboração teórica.
A atmosfera histórica dominada por “dois estados de espírito distintos, o realismo imediatista e o desejo por grandes coisas”, no dizer de San Tiago Dantas, é o ambiente em que Joaquim Nabuco transitou. O traço distintivo dos expoentes daquela geração é justamente esse “desejo por grandes coisas”, cada qual senhor de uma interpretação própria, mas unificados, em sentido mais profundo, na crença no futuro do País. Daí a necessidade de pensar o Brasil, de estudar sua história, de refletir sobre suas realidades.
A proclamação da República isolou Nabuco – monarquista convicto até o fim – da vida política militante. Continuou ele a se dedicar, com afinco, à vida intelectual. Não se omitiu dos debates públicos. Sua contribuição está registrada nos livros que escreveu após 1889. Alguns deles integram qualquer lista de textos fundamentais para se entender o Brasil.
Passado mais de um século, o fato que mais chama a atenção no alvorecer da República – o Brasil era então considerado um país de quinta categoria, como assim definiu o latino-americanista inglês Percy Martin – é a confiança de homens como Nabuco nas forças profundas da nacionalidade.
É um momento hegeliano da nossa história, no qual se evidencia uma percepção da realidade que replica a visão do filósofo alemão sobre a importância da idéias. Cito Hegel: “A cada dia, fico mais convencido de que o trabalho teórico logra mais feitos do que o trabalho prático. Uma vez que o campo das ideias é revolucionado, o estado atual das coisas não continua a resistir”.
É nessa atmosfera intelectual de idealismo otimista que Nabuco contribui para revolucionar, a seu modo, o “campo das ideias”, mesmo em um terreno habitado por vozes discordantes e contraditórias.

Nabuco, liberal, abolicionista e pioneiro da questão social
“O escravo brasileiro, literalmente falando, só tem de seu uma coisa – a morte. Nem a esperança, nem a dor, nem as lágrimas o são...” Raramente se terão escrito palavras tão fortes, tão sentidas e ao mesmo tempo tão apropriadas para definir a desumanização do escravo.
O pensamento de Joaquim Nabuco transitava entre o elã reformista e a preservação da ordem estabelecida. Sua ação política pretendia transformar o Império em um sistema de bases mais liberais sem, contudo, fazer ruir suas estruturas. Desejava ver, à maneira, por exemplo de Gladstone, na Grã-Bretanha, a monarquia brasileira progredir para um formato mais descentralizado em sua relação com as províncias; um formato em que o Poder Moderador fosse mitigado pelo Conselho de Ministros; em que a Câmara dos Deputados assumisse, em detrimento de um Senado aristocrático, a dianteira na lide das questões nacionais. Mantinha, no entanto, sua confissão monarquista, apesar de nunca ter aceitado os títulos nobiliárquicos que lhe foram oferecidos.
Nabuco queria, antes de mais nada, ver o fim da escravidão. Da tribuna, em conferências e nos artigos que publicou na grande imprensa, batalhou com afinco pela abolição. Mas não se contentava com a abolição da escravidão meramente formal, jurídica, no papel. Desejava ver o ex-escravo verdadeiramente integrado ao sistema produtivo e à sociedade.
Nabuco poderia ser qualificado, de acordo com a terminologia mais atual, como um liberal progressista. Embora gestado no caldo cultural da aristocracia e do patrimonialismo burocrático característicos do seu século, não hesitou em confrontar o cânone político. Mesmo em prejuízo de sua trajetória eleitoral, empunhou a bandeira do abolicionismo, transformando-a na causa de sua vida pública. Para Nabuco, a manutenção do regime de escravidão era o verdadeiro grilhão que atava o Brasil ao atraso e impedia que o País atingisse a civilização. Sua profecia, infelizmente, encontrou guarida na realidade: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Passados mais de cem anos, basta pensar na inter-relação dos problemas sociais e raciais, atestada pelas estatísticas ou por qualquer olhar minimamente crítico, para comprovar a exatidão desse prognóstico.
Para Nabuco, a abolição da escravidão era, na mesma proporção, um imperativo ético e uma precondição para a modernização do Brasil. Nabuco terá sido, quiçá, o principal formulador conceitual da causa abolicionista. Rebouças, Patrocínio, Luís Gama foram, antes de mais nada, mobilizadores da opinião pública. Nabuco deu consistência intelectual à causa. Associou-se à British Anti-Slavery Society – talvez a primeira OnG de que se tem notícia. Redigiu obras sobre a libertação dos escravos e sobre seu próprio envolvimento emocional com a causa.
Em Roma, foi recebido em audiência pelo Papa Leão XIII. Tinha como missão autoimposta defender a emancipação dos escravos e pedir uma condenação da Igreja Católica à manutenção da prática de se escravizarem seres humanos. “O homem não pode ser escravo do homem”, dizia, segundo linha de raciocínio que parecia sorver-se de inspiração kantiana, matizada por uma tendência talvez mais próxima do liberalismo pragmático anglo-saxão do que do igualitarismo rousseauniano. Nabuco admite que “o movimento contra a escravidão no Brasil foi um movimento de caráter humanitário e social antes que religioso”. Recorreu ao Papa exatamente para pressionar os dirigentes no Brasil. Leão XIII viria a publicar uma Bula Papal que condenava a escravidão a partir de uma perspectiva humanista. Pode-se dizer, assim, que o político pernambucano teve uma pequena parcela de responsabilidade em levar a Igreja Católica, ainda no século XIX, a adotar uma visão mais avançada sobre a universalidade dos direitos humanos. A Bula, entretanto, só viria a ser publicada depois do 13 de maio de 1888, não tendo efeito prático para a causa antiescravagista no Brasil. É interessante notar a preocupação de Nabuco, registrada em “Minha Formação”, em justificar sua posição, distinta da dos governantes da época, embora próxima, no fundo, segundo sua percepção, dos sentimentos da Família Real. A diplomacia do Império levaria a melhor, mas somente no curto prazo. Os que viveram o período da ditadura militar no exercício de função pública entendem perfeitamente este conflito de lealdades. E é um testemunho em favor de Nabuco que tenha optado por defender seu ideal, em detrimento das posições reacionárias dos últimos gabinetes do Império.
Em “O Abolicionismo”, Nabuco sublinha a preocupação com o futuro socioeconômico do ex-escravo, com a integração do brasileiro de origem africana na sociedade nacional. Ressalte-se a ausência dessa preocupação no debate político do Império e da República Velha. Nenhum partido político da Monarquia e da Primeira República – à exceção de talvez algum partido marginal ou, como se diz hoje em dia “nanico – trazia em seu programa menção a tão relevante e crucial questão não somente para o futuro do ex-escravo, mas para o porvir do país. O ex-escravo foi totalmente abandonado pelo governo, pela Igreja e pelos empresários.
Referindo-se a “O Abolicionismo”, Gilberto Freyre atesta que a famosa obra “expressa um reconhecimento, nas décadas de [18]70 e 80, de já haver no Brasil uma questão social e não apenas um problema de substituição do trabalho escravo pelo livre”. O autor de “Casa Grande e Senzala” indaga “como teria surgido em Joaquim Nabuco essa espécie de argúcia – a do político, a do parlamentar, a do analista e interprete de aspirações brasileiras, sensível à importância do social?”. Em seu entender, a resposta está em três fatores: a Faculdade de Direito do Recife, cujo nome pioneiro era Faculdade de Ciências Sociais e Jurídicas, o autodidatismo de Nabuco e a sua “condição de brasileiro de Pernambuco”.
‘Em 1884, Nabuco sentenciou: “As reformas de que imediatamente necessitamos são reformas sociais que levantem o nível do nosso povo, que o forcem ao trabalho e deem em resultado o bem-estar e a independência que absolutamente não existem e de que nenhum governo ainda cogitou para a Nação Brasileira. Eis a razão pela qual abandonei no Parlamento a atitude propriamente política para tomar a atitude do reformador social. Foi porque eu me desenganei das reformas políticas”.
A ideia social de Nabuco inspiraria em 1949, ano do centenário de seu nascimento, Gilberto Freyre e um grupo de políticos e intelectuais a proporem a criação de um instituto de pesquisas sociais “destinado a cuidar de desdobramentos da questão social no Brasil. Cuidado, cujo início – apenas o início – se verificou com a incompleta e um tanto retórica abolição de 13 de maio”. A iniciativa resultou na Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas em Ciências Sociais. Coerente com o pensamento e a ação do grande brasileiro, o Instituto Joaquim Nabuco tem como propósito o “estudo sociológico das condições de vida do trabalhador brasileiro da região agrária do Norte e do pequeno lavrador dessas regiões que vise ao melhoramento dessas condições”.
Para além da adesão aos princípios do liberalismo clássico, Nabuco foi, portanto, pioneiro da introdução da questão social no Brasil. Mais do que um intérprete da formação do Brasil, Joaquim Nabuco foi defensor de uma agenda para o futuro, que incluía, além do fim da escravidão, a própria redefinição da questão agrária.

Nabuco e Rui: divergências de enfoques e identidade de propósitos
Interessante notar como as vidas de Joaquim Nabuco e Rui Barbosa – dois dos grandes homens públicos da Belle Époque brasileira, frequentemente comparados – estiveram sempre entrelaçadas. Apesar das diferenças de personalidades, opiniões e trajetórias, mantiveram inabalável amizade, admiração recíproca e compreensão.
Ambos nasceram no mesmo ano, 1849. Nabuco teve berço aristocrático-rural, e Rui vinha uma família de classe média urbana. Foram colegas na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, militaram na política acadêmica na agremiação estudantil “Ateneu Paulistano”, inspiraram-se na fonte liberal de pensamento.
Os estilos de entender e fazer política apresentam marcantes diferenças, porém. Nabuco tinha como valor principal a ordem, no caso monárquica, que acaba por matizar seu ideário da reforma político-social, particularmente, o federalismo, a abolição, a integração socioeconômica do ex-escravo, a reforma agrária, e a elevação do padrão de vida do pequeno trabalhador rural. Mudar sim, porém dentro da ordem estabelecida.
Gilberto Freyre explica o itinerário de Nabuco: “ao apresentar-se como ‘reformador social’, ele se define por esta opção, para a época insólita, de renovação da ação política pela perspectiva social”. E acrescenta: “tomou rumos diferentes dos seguidos pelo pai [o Senador Nabuco de Araujo] rigidamente jurista. Tomou rumos sociais. Pode-se dizer que plasticamente sociais, no sentido de não serem doutrinariamente isto ou aquilo”. Valorizou suas experiências de vida: “Para Nabuco, povo, gente do povo, homem do povo, negro, gente de cor, foram realidades com que conviveu”. A leitura das lembranças de Massangana endossa essa interpretação.
Afonso Arinos de Melo Franco ressaltou o “Humanismo de Nabuco”, humanismo do século XIX, que combina o liberalismo com o individualismo. Esclarece que “o individualismo de então – é esta uma palavra nova, posta em circulação por Alexis de Tocqueville – era uma doutrina essencialmente liberal, uma doutrina essencialmente evolutiva, transformadora, progressista – não se confundia com o egoísmo –, mas era fundada na “crença nas possibilidades de aprimoramento e da evolução do homem”. Para o ex-Chanceler, é esta a grande lição do “individualista e liberal” Joaquim Nabuco.
Chega a ser difícil explicar como Nabuco – indivíduo de superior inteligência, ambição legítima pelo poder e dotado de plasticidade no pensamento e na ação – priorizou a fidelidade ao Imperador D. Pedro II, mesmo após proclamação da República a ponto de sacrificar seu futuro político, suas possibilidades de ação prática. Mergulha em ostracismo na solidão de Paquetá, onde já se encontrava no 15 de novembro de 1889.
Já Rui relegava a segundo plano a forma de governo, seja ela monárquica seja republicana. Aplica-se muito bem a Rui Barbosa a definição de Karl Mannheim, segundo a qual “a utopia da mentalidade liberal humanitária é a ideia” – ideia defendida em sua essência, independente das circunstâncias. Na visão de Rui, por exemplo, a democracia deveria ser tanto um valor nacional como internacional.
Assim, para Rui Barbosa, a forma de governo e sua ordem política é apenas um detalhe que pode e deve ser mudada, se é um empecilho para a implantação das ideias que defendia: federalismo, liberdade individual, abolicionismo, industrialização, Estado de Direito e igualdade das nações.
Como primeiro Ministro da Fazenda da República, Rui tentou empreender gestão modernizadora e reformista da estrutura produtiva do país, pois, como bem observou San Tiago Dantas, “desejava ver abertas as portas da oportunidade num país até então congelado pelos privilégios da classe proprietária.”
Rui atua com determinação de aço e tem plena consciência de que “os governos revolucionários não são, não podem ser governos econômicos”, conforme expressa com notável franqueza. Por outro lado, Hermes Lima – Ministro das Relações Exteriores do Governo João Goulart e saudoso membro desta Casa –, considerando as fortes e autorizadas críticas de Rui aos vícios, principalmente às fraudes eleitorais, da Primeira República, aponta com lucidez ter sido o tribuno baiano um dos principais ideólogos da Revolução de 1930 – ou seja, da derrubada da ordem política então vigente: “Rui fora o revolucionário histórico por excelência da Segunda República”.

Nabuco: a reforma agrária. Rui: a revolução industrial.
Nabuco proferiu um dos seus discursos mais importantes da campanha abolicionista no Recife, na praça de São José do Ribamar, em 5 de novembro de 1884. Nele levanta “pela primeira vez a bandeira de uma lei agrária, a bandeira da constituição da democracia rural”. Afirma que “não há outra solução possível para o mal crônico e profundo do povo senão uma lei agrária que estabeleça a pequena propriedade, e que vos abra um futuro, a vós e vossos filhos, pela posse e cultivo da terra. É preciso que os brasileiros possam ser proprietários de terra, e que o Estado os ajude a sê-lo”. Este bem poderia ser o lema do Ministério do Desenvolvimento Agrário do Governo do Presidente Lula.
Nabuco sustentou ainda que: “A propriedade não tem somente direitos, tem também deveres, e o estado de pobreza entre nós, a indiferença com que todos olham para a condição do povo, não faz honra ao Estado. Eu, pois, se for eleito, não separarei mais as duas questões: a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. Uma é o complemento da outra. Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão”. Poucas vezes, se é que alguma, um político ou intelectual daquela época terá proferido palavras tão contundentes. Não é à toa que Alceu de Amoroso Lima, grande batalhador da liberdade e das causas sociais, se pergunta no prefácio que escreveu, em 1966, para uma edição popular de “Minha Formação”: “Quando terá o Brasil outro Joaquim Nabuco para levar adiante a revolução social, a da passagem do trabalho livre ao trabalho justo, ou melhor, do nominalmente livre ao realmente livre?”
No ideário revolucionário de Rui Barbosa, sobressai sua luta pela industrialização do Brasil. Para ele, a República só se consolidaria “quando suas funções se firmassem na democracia do trabalho industrial”. Rui aponta ainda como base da industrialização o ensino industrial que em sua visão “inaugurará a iniciação das forças populares na obra política do Estado”. Rui intuiu, assim, a revolução democrática que seria desencadeada pela industrialização, com todos os percalços que conhecemos. Não é exagerado dizer que essa revolução teve um dos seus lances mais expressivos na eleição, em 2002, de um operário, vindo do ensino industrial e das lutas sindicais, para a Presidência da República.
Nabuco, patrono da reforma agrária, e Rui, pioneiro da industrialização, complementam-se e apontam os dois maiores desafios da modernização democrática do Brasil. E é mister reconhecer a audácia de Nabuco como precursor da justiça social no Brasil. Mais uma vez, é Gilberto Freyre quem assinala: “Num dos seus discursos de abolicionista, Nabuco repetiu esta frase que ele próprio chamou de ‘revolucionária’: ‘O que é o operário? Nada. O que virá ele a ser? Tudo”. Não há aqui um eco, talvez inconsciente, de doutrinas socialistas do século XIX que Nabuco, ele próprio, não professou?
Com a Lei Áurea, o abolicionista venceu a causa de sua vida política. Como a escravidão servia de sustentáculo para o Império, a abolição antecipou o ocaso do reinado de Pedro II. E a proclamação da República abreviou a carreira política de Nabuco. O pensador pernambucano viria a ser reconduzido à vida pública por Campos Sales e pelo Barão do Rio Branco, este seu amigo de juventude, que lhe facultaram renascer para o serviço da Pátria, não mais no Parlamento, mas, desta feita, na diplomacia.

Nabuco diplomata
Político, escritor, jornalista, intelectual engajado, prócer do movimento abolicionista, Nabuco foi também diplomata de grande destaque.
Ainda na mocidade, a pedido de seu pai, Nabuco de Araújo, um dos expoentes do Segundo Reinado, Joaquim Nabuco seria nomeado adido da Legação brasileira em Washington. Nos Estados Unidos, atentou, pela primeira vez, nas movimentações no tabuleiro da geopolítica global e nas virtudes e nos vícios da democracia de massas. Há, em “Minha Formação”, análises penetrantes sobre a vida política dos Estados Unidos, em contraste com os costumes e práticas europeias.
Alguns anos depois, seria designado adido de nossa representação em Londres, embora por curto lapso de tempo, tendo tido que regressar logo ao Brasil, em função do falecimento do pai. Sobre a capital britânica, afirmou, revelando grande sensibilidade: “o que há em Londres como prazer de vida não é a arte, mas o conforto; não é a regra, as medidas, o tom das maneiras; é a liberdade, a individualidade; não é a decoração, é o espaço, a solidez.”
A reflexão fez-me recordar da sensação que tive, em certa ocasião, ao atravessar a Waterloo Bridge, aí pelos anos oitenta. Vivia eu na Holanda, para onde havia sido mandado pelo Itamaraty, como para uma espécie de exílio dourado, onde purgaria o pecado de haver ofendido os brios do regime militar ao autorizar e financiar, como Presidente da Embrafilme, a película “Pra frente Brasil”, de Roberto Farias. Aproveitando alguns dias de folga – o que não era difícil de obter na pacífica Embaixada na Haia –, fui visitar o meu orientador, Ralph Miliband, na capital britânica. Ao deslocar-me a pé do Centro Cultural do South Bank – onde estão localizados o Royal Festival Hall, a Hayward Gallery, além da cinemateca, teatros e outras salas de concerto –, em direção ao Aldwich, onde fica a London School of Economics, tive a sensação de que Londres era uma espécie de grande cérebro, no qual, como num filme de Tarkovski, se moviam pessoas e ideias, formas diferenciadas de agir e de ver o mundo. Alguns séculos antes, o grande dicionarista e filósofo Samuel Johnson havia definido a grande cidade com uma frase simples e magistral: “He who is tired of London, is tired of life”. Nabuco bem captou essa confluência das liberdades individuais como característica da capital britânica.
Na política brasileira do século XIX, a diplomacia oferecia-se como alternativa ao ostracismo da política eleitoral-partidária. Em período anterior a sua profissionalização, a carreira diplomática afigurava-se como a segunda opção de políticos ou pretendentes; uma sinecura com que eram compensados nos períodos em que seus partidos estavam excluídos do exercício do poder. No Império, como aliás até muito recentemente na República (ainda que de forma mais contida), a atividade diplomática fazia as vezes de banco de reservas da política e do estamento burocrático.
Nabuco ingressou na diplomacia por essa porta, da mesma forma que Juca Paranhos. À época em que Nabuco foi enviado a Washington, o futuro Barão do Rio Branco seria designado, também a pedido de seu pai, Cônsul do Brasil em Liverpool. Nabuco de Araújo, a propósito do futuro do herdeiro, a quem desejava ver substituir a si como homem de Estado, chegou a dizer: “seu talento não deve morrer na diplomacia”. Alceu de Amoroso de Lima faria comentário bem mais mordaz e, aliás, pouco lisonjeiro à diplomacia em seu prefácio a “Minha Formação”.
Nabuco regressaria a Londres, já no período republicano, desta vez para preparar as memórias da defesa brasileira na disputa com a Inglaterra pela posse da região do Pirara. Foi resgatado para o serviço público pelo Presidente Campos Sales, que o designou representante do Brasil na disputa de fronteiras com a Guiana Inglesa, a ser arbitrada pelo Rei Victor Emanoel, da Itália.
46. Ao aceitar o convite, após mais de uma década de hibernação política a que se submeteu na esteira da troca de regime, o monarquista de luto converteu-se, finalmente, em funcionário da República. Afirmou que a aceitação da missão que lhe foi confiada era resposta a um chamado patriótico. Após a longa – e vitoriosa – campanha abolicionista, a nomeação para a Comissão de Limites da Guiana Inglesa marcava seu regresso ao que Ângela Alonso, uma de suas biógrafas mais recentes, classificou como seu “leito natural”: a diplomacia. Na realidade, é parte do enigma que envolve o vulto de Nabuco saber afinal qual era o seu leito natural: a diplomacia, a mobilização abolicionista ou a tribuna parlamentar.
Já em Londres, foi chamado a ocupar, inicialmente de forma interina, a chefia da missão do Brasil na capital britânica, vaga desde o falecimento do seu ocupante. As relações com a Inglaterra, país que acolhera sua causa abolicionista ao fio de tantos anos, andavam estremecidas: além da invasão da Ilha de Trindade, em 1895, à revelia da soberania brasileira, a ocupação da região emoldurada pelos rios Tacutu, Cotingo e Rupununi opunha o Rio de Janeiro a Londres.
A mediação italiana resultou em bipartição – supostamente – salomônica do Pirara. O laudo arbitral do Rei Victor Emanoel concedeu 3/5 do território disputado à Grã-Bretanha e 2/5 ao Brasil. O argumento brasileiro sobre o uti possidetis – o título de propriedade sobre um território com base na anterioridade e antiguidade da ocupação – havia sido refutado. A decisão foi vista como uma derrota diplomática para Nabuco e para o Brasil. O contraste com as vitórias do Barão do Rio Branco nas questões de Palmas e do Amapá também alimentaram a interpretação de que o Brasil havia sido alienado de território que lhe cabia.
A opinião pública e a historiografia viriam a redimir Nabuco. Há um quase consenso de que a escolha do árbitro influenciou o resultado do laudo arbitral, muito mais do que a qualidade das memórias preparadas. O mediador italiano, que nutria pouco discretas simpatias pela Inglaterra, buscou solução que não melindrasse Londres. A despeito da relativa falta de precisão histórica e técnica do laudo arbitral, a decisão italiana foi plenamente acatada pelo Governo brasileiro. O respeito às decisões arbitrais sobre nossos limites tem sido sempre um postulado de nossa diplomacia.
Joaquim Nabuco seria nomeado, em 1905, primeiro Embaixador do Brasil em Washington, assim que a Legação brasileira nos Estados Unidos foi promovida à categoria de Embaixada – a primeira entre todas.
Na época, o status de “Embaixada” era privilégio concedido às grandes potências. Era considerado uma mostra de hierarquia superior e, ademais, havia um efeito prático: o Embaixador tinha acesso ao Presidente de uma maneira que o Ministro de Legação não tinha. O gesto de elevar a Legação dos Estados Unidos, portanto, não estava desprovido de simbolismo político: sinalizava que o Brasil republicano passava a atribuir prioridade à agenda continental. Era a materialização da transferência do eixo preferencial da diplomacia brasileira da Europa para as Américas. No mesmo ano, como manifestação de reciprocidade, foi no Rio de Janeiro que os Estados Unidos também inauguraram sua primeira Embaixada na América do Sul.
Ao assumir a Embaixada em Washington, Nabuco trabalhou em sintonia com o Barão do Rio Branco para estreitar as relações com os Estados Unidos, país que já dava mostras da importância que iria adquirir ao longo do século XX. Em pouco tempo, Nabuco conquistou grande prestígio na capital norte-americana, a ponto de o Presidente Theodore Roosevelt ter aconselhado um diplomata recém-chegado a conhecer logo o Embaixador do Brasil, segundo ele, “porque não há em Washington personalidade mais interessante”.
A “aliança não-escrita”, assim definida pelo historiador Bradford Burns, forjava-se na percepção do peso relativo das duas repúblicas no hemisfério. Mesmo antes de assumirem o status de superpotência, os Estados Unidos dos tempos do Barão e de Joaquim Nabuco balanceavam, de certo modo, o eurocentrismo que dominava as relações internacionais. Pode-se dizer que o laudo arbitral sobre o diferendo com a Inglaterra traumatizara Nabuco. Como assinala Rubens Ricupero, mais do que o resultado em si, passou a preocupar Nabuco o seu arrazoado, que poria em risco nossa soberania sobre boa parte do território nacional, especialmente na Amazônia. Daí a afirmação, que hoje pode até soar simplista, segundo a qual “para nós a escolha é entre o monroísmo e a recolonização europeia”.
A aproximação com os Estados Unidos da primeira década do século XX não estava, portanto, eivada de nenhum sentido de subserviência ou de assombro. O cálculo de Rio Branco e de Joaquim Nabuco era de que os Estados Unidos estavam dispostos a impedir ingerências europeias no continente americano. Além disso, tal movimento reforçava a posição do Brasil em sua vizinhança imediata.
A “alta inteligência”, para recorrer ao jargão diplomático da época (hoje talvez se diria “parceria estratégica”) com os Estados Unidos parecia, assim, de grande interesse para o Brasil. Com o benefício da visão retrospectiva, pode argumentar-se que Nabuco nutria uma visão que viria a revelar-se talvez excessivamente otimista sobre o comportamento dos Estados Unidos como potência global. Se, por um lado, conforme previu em “Balmaceda”, aquele país optou por não se lançar em aventuras neocoloniais do tipo praticado pelas potências europeias, a evolução dos fatos não confirmou sua opinião de que Washington não buscaria estabelecer uma esfera de influência própria na América Latina e Caribe.
Como Embaixador brasileiro em Washington, Nabuco trabalhou para fazer do Rio de Janeiro a sede da Terceira Conferência Pan-americana de 1906. Vitorioso, fez gestões para que o Secretário de Estado Elihu Root viesse ao Brasil, no que passou à História como a primeira visita do chefe da diplomacia americana ao exterior. Nabuco presidiu a Conferência, tendo-se empenhado, em seus eventos preparatórios, em evitar que as rusgas entre países do continente impedissem que o encontro chegasse a bom termo.
De volta a Washington, imbuídos do espírito de integração continental, Root e Nabuco trabalharam conjuntamente pela expansão do Bureau das Repúblicas Americanas, que chegou a ter suas atividades concentradas na Residência do Embaixador do Brasil. A União Pan-americana, que viria a ser formalizada na Conferência Pan-americana de Buenos Aires, já após o falecimento de Joaquim Nabuco, é, evidentemente, um embrião da atual Organização dos Estados Americanos.
Em vista de seu sucesso na condução da Conferência Pan-americana, Nabuco foi cogitado para assumir a chefia da delegação brasileira que seria enviada à Haia para a Segunda Conferência de Paz. O evento provocava grande movimentação na comunidade internacional. Na Haia, seriam definidas as próprias bases do direito internacional. Em face de problemas de saúde, que já enfrentava, e do convite de Rio Branco a Rui Barbosa, Nabuco somente pôde colaborar com os preparativos para a atuação brasileira na Conferência.
Rio Branco, homem público acima de tudo racional, aceita a impugnação do nome de Nabuco – seu escolhido – por influentes setores republicanos, para chefiar a delegação brasileira. Acolhe a indicação do nome de Rui Barbosa para ser o representante do Brasil nessa pioneira e importante assembleia internacional – a primeira na história a reunir todos os Estados soberanos.
Apesar da campanha movida contra seu nome pelo “Correio da Manhã”, Joaquim Nabuco demonstra grandeza de espírito ao apoiar e colaborar com o amigo Rui Barbosa na estreia do Brasil na política global. Preparou perfis dos delegados que conhecia – os Embaixadores aqui presentes reconhecem a importância dessa tarefa quando nos preparamos para uma negociação –, e trocou farta correspondência com o Chefe da delegação brasileira. Entre as sugestões que faz a Rui, Nabuco lembra o exemplo da missão do Conde Witte aos Estados Unidos por ocasião do Tratado de Portsmouth, oportunidade em que o enviado russo saiu das regras e das etiquetas, dirigindo-se à imprensa americana e “conquistou para seu país a boa vontade geral”. Recomendava Nabuco a Rui: “Você não é um diplomata de carreira está numa missão em que o estadista não tem que considerar protocolos, nem formulários e por isso pode libertar-se de quantas regras tolas e anacrônicas que ainda prendem o nosso ofício, num tempo em que a opinião é a força das forças em política”. Em muitos embates recentes e atuais da diplomacia brasileira, sobretudo em questões econômicas e comerciais, as lições de Nabuco continuam a servir de inspiração.
Foi nas Conferências do Rio de Janeiro e da Haia que o Brasil debutou na diplomacia multilateral. O multilateralismo viria a se consolidar como um canal privilegiado de expressão dos princípios, pontos de vista e interesses brasileiros no mundo. Uma ordem internacional organizada por regras previsíveis e em que se constranjam o arbítrio e o uso unilateral da força é não só moralmente desejável como também do mais profundo interesse para uma nação de vocação pacífica como o Brasil. Não é exagerado crer que o Brasil, desde aquele momento, desenvolveu uma visão verdadeiramente multilateralista das relações internacionais.
Nabuco, entretanto, nutria opinião algo distinta daquela de Rui. Ao contrário de Rui Barbosa, que na Segunda Conferência Internacional da Haia consagrou-se pela defesa da igualdade soberana entre os Estados, o pernambucano acreditava que a extensão de direitos iguais para todos os países, representava, na verdade, manancial de desigualdade no cenário internacional. Segundo seu raciocínio, os países mais populosos ficariam, em termos proporcionais, sub-representados em uma ordem internacional formada por unidades que se beneficiassem das mesmas prerrogativas jurídicas. É um debate que continua vivo, se não na teoria, pelo menos na prática, e que pode ser resumido, por exemplo, pela latente disputa de competências entre a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança da ONU. Também está presente na polêmica em torno das novas configurações informais da chamada “governança global”, no fim do século passado e no início do atual: G-8, G-20 e todos esses “gês”.
A visão de Rui triunfou. Convencido, o Barão do Rio Branco instruiu a delegação brasileira à Haia a defender a tese de que qualquer país independente, a despeito de suas dimensões, da região em que estivesse localizado ou do seu grau de “civilização” (era este mesmo o termo utilizado), seriam titulares dos mesmos direitos nas relações internacionais. A defesa da igualdade soberana dos Estados tornou-se, desde então, um pilar da ação externa brasileira.
Apesar dos argumentos que expôs em longa missiva a Rui Barbosa, Nabuco não poderia ser definido como um defensor da desigualdade ou da hierarquização entre países. Ele compreendia essa desigualdade como uma situação de fato e buscava reservar ao Brasil o espaço de grandeza, segundo ele, correspondente à sua dimensão. Entendia que, em um sistema organizado pela diferença de capacidades relativas entre os países, ao Brasil cabia a inclusão no rol dos “grandes”.
O pensamento realista de Nabuco estava, naturalmente, influenciado pelas noções de seu tempo. A principal preocupação dos formuladores de política externa brasileira de então, bem como de outras nações militarmente fracas, era a preservação da integridade territorial e da soberania nacional (já me referi ao “trauma do Pirara”). A preocupação, respectivamente de Rui e Nabuco, com a universalidade dos princípios e com a preservação da soberania nacional, resultou o histórico compromisso brasileiro com uma ordem internacional fundada em regras.

O pensamento diplomático de Nabuco: a questão da América Latina e da América do Sul
Forjado em uma matriz cultural eminentemente europeia, Nabuco foi tomado de fascínio pela sociedade norte-americana, pela vivacidade de sua democracia, pela abertura do país aos fluxos migratórios. O que veio a ser confundido, por um certo revisionismo histórico, como deslumbramento, era, na verdade, fascínio com a própria ideia de modernidade. Nas conferências que proferiu em várias universidades americanas, entre as quais se destacam as de Chicago e Wisconsin, transparece sua admiração pelo Novo Mundo e pela contribuição que acreditava que os Estados Unidos dariam à civilização, dizia ele, “para além do tabaco”.
Merece destaque a análise do cenário internacional que Nabuco faz em carta a Campos Sales em 1906. O Embaixador brasileiro em Washington enxerga com clareza a relevância da política exterior e expressa sua preocupação com a elevação do nível de tensão entre as potências do período: “Minha impressão é que para todos os países da Europa e da América o problema externo tende cada dia mais a sobrepujar os problemas internos, porque estamos caminhando para uma época em que a sorte de todos eles, sem exceção, tem que ser afetada pela solução que tiver o conflito de influência e preponderância entre os grandes sistemas atuais de força” – e é interessante notá-los – “como sejam a Tríplice e a Dupla Aliança, o Império Britânico e a doutrina Monroe”.
O decantado pan-americanismo de Nabuco por vezes oculta a importância que ele atribuía às relações com os países vizinhos mais próximos. Pressentiu o grande estadista que o continente sul-americano está unido não somente pela circunstância geográfica, mas também pela escolha de uma forma de governo que revelava um sentido de destino comum: já na época, o sistema republicano.
Em “Balmaceda”, obra notável, sobretudo pelo pioneirismo que representa esse estudo sobre um estadista, seu contemporâneo, de outra nação sul-americana, Nabuco afirmou: “O interesse que antes já me inspiravam as coisas sul-americanas aumentou naturalmente depois da Revolução de 15 de novembro. Desde então, começamos a fazer parte de um sistema político mais vasto. Desse modo, o observador brasileiro, para ter ideia exata da direção que levamos, é obrigado a estudar a marcha do Continente, a auscultar o murmúrio, a pulsação continental”. O moderno impulso integracionista, que levou à criação do Mercosul e da Unasul, não poderia encontrar expressões mais felizes e apropriadas.
No livro sobre o estadista chileno, Nabuco adiantou a prioridade que confere à América do Sul para a inserção internacional do Brasil. Aponta, com firmeza, a necessidade de um caminho próprio: “A solução do problema tem assim que ser procurada dentro de cada um dos nossos países, mas depende da formação em torno deles de uma opinião interessada em seu resgate, que auxilie os esforços, ou, quando mais não seja, registre os sacrifícios dos que em qualquer parte lutarem pela causa comum.” Não é outra a inspiração, por exemplo, da cláusula democrática do Mercosul.
É um dos primeiros intelectuais brasileiros a trabalhar e priorizar o conceito de América do Sul. Coloca-se como um “espectador sul-americano”, chama a atenção para o fato de que “dia a dia torna-se mais importante, para nós, conhecer o estado político da América do Sul”.
O livro sobre o presidente chileno logra, a um só tempo, radiografar um momento histórico da circunstância regional, a revolução chilena de 1891, e descreve – até com certo registro trágico-poético – o quadro psicológico da personagem central. A composição de Nabuco sobre o isolamento e a solidão que levaram Juan Manuel Balmaceda a tirar sua própria vida, enquanto asilado dentro da Legação argentina em Santiago, não recorre a imagens fáceis ou à dramatização edificante. Além de extraordinário esforço, historiográfico e literário, revela a densidade intelectual e a profundidade de análise do autor.
É traçado paralelo, frequentemente (inclusive numa ode de Pablo Neruda), entre a trajetória de Balmaceda e aquela de Salvador Allende. A plataforma de governo progressista, a alienação dos setores mais conservadores da sociedade e o fim trágico seriam elementos presentes nas biografias desses dois líderes chilenos. Não é possível, tampouco, ler a descrição de Nabuco dos últimos dias de Balmaceda sem evocar a memória de outros políticos que escolheram abreviar dramaticamente suas próprias vidas.
A figura de Balmaceda, por quem o autor nutre doses similares de interesse e de antipatia, serve de pretexto para o verdadeiro mote central do livro: as tensões presentes no regime presidencialista entre participação popular e ordem pública, entre autoridade e democracia, entre eficácia e representatividade. Não há uma palavra sobre o substrato econômico do balmacedismo. Não há menção ao controle sobre o salitre, por exemplo. Joaquim Nabuco discorre, na obra, sobre o equilíbrio de poderes entre Executivo e o Legislativo em uma república, sob a ótica dos perigos da excessiva concentração do poder. Monarquista e liberal, Nabuco perfilou-se, no campo das ideias, aos parlamentares republicanos chilenos. Mais importante que este tipo de escolha é o esforço de análise de dilemas institucionais até hoje vivos, a partir do estudo de uma situação específica vivida por um país sul-americano.
Em Balmaceda, vem à superfície a percepção de Nabuco acerca da importância da estabilidade da região e do progresso dos vizinhos para o Brasil. Com grande atualidade, diz ele: “A liberdade argentina tornou-se um interesse direto para o Brasil, como era para os argentinos a liberdade chilena no tempo de Rosas. É do interesse do boliviano e do peruano que o Estado mais vizinho lhe ofereça um asilo seguro, e sirva ao seu país de estímulo”.
Apesar de algo longo, cito por extenso, dada a sua importância para a compreensão do sentimento de Nabuco, um parágrafo do capítulo final do livro: “Desde que é preciso aceitar o inelutável” – isto é, a República – “o estudo da Revolução chilena tem grande interesse para nós do ponto de vista da evolução política do Hemisfério. De fato, dado o progresso da moral universal, não é possível que a civilização assista indefinidamente impassível ao desperdício de força e atividade humana que se dá em tão grande escala em uma das mais consideráveis seções do globo, como é a América Latina. A manutenção de um vasto continente em estado permanente de desgoverno, de anarquia, é um fato que dentro de certo tempo há de atrair forçosamente a atenção do mundo, como afinal a atraiu o desaproveitamento da África. Como se fará a redenção dos países centro e sul-americanos? Onde acharão eles amparo contra os seus governos extortores? Como se fará nascer e crescer em cada um deles a consciência do Direito, da Liberdade, e da Lei, que neles não existem, por não ter sanção alguma?” Ainda hoje, os muito progressos alcançados na sedimentação do estado democrático na América Latina e Caribe, bem como os avanços econômicos e sociais da região, não podem servir de pretexto para que se baixe a guarda.
Merece registro, na dimensão sul-americana de Nabuco, a intenção por ele expressa, em carta ao Barão Homem de Melo, em 1882, de “fundar e dirigir no Brasil um jornal”, que teria, entre seus propósitos, ser um periódico “sul-americano interessado em desenvolver relações que não existem entre o nosso e países como a República Argentina e o Chile. Um jornal assim, estou certo, seria o maior serviço que se poderia prestar ao Brasil”.
No horizonte ideológico em que um homem de seu tempo podia mover-se, o pan-americanismo afigurava-se como a expressão de uma integração regional possível. Nabuco abraçou essa causa com ardor. Chegou a prenunciar a formação de uma comunidade política nas Américas. O desenvolvimento altamente assimétrico no continente americano faz com que essa visão seja hoje matizada por natural cautela. Subsiste, por certo, o interesse em estreitar a cooperação entre todos os países das Américas, mas seria arriscado falar em integração entre entidades com tanto desnível de poder.
A integração regional assume, assim, formas diversas. O Mercosul, estruturado inicialmente para incentivar o aumento do intercâmbio econômico, apesar da forte motivação política que inspirou os seus primórdios, constituiu a vértebra central de um processo de afirmação da América do Sul como espaço geopolítico. A União de Nações Sul-americanas, a Unasul, ao ter logrado envolver todos os países do continente em torno de um projeto de coordenação política, significou um passo adiante nessa caminhada. No final de 2008, a convite do Presidente Lula, foram reunidos, na Costa do Sauípe, na Bahia, os Chefes de Estado de todos os países da América Latina e Caribe. Foi nesta conferência – a CALC, como ficou conhecida – que todos os países da região encontraram-se, pela primeira vez, em dois séculos de História, tendo como base uma agenda própria, sem tutela externa.
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Vale a pena, novamente, recorrer a Nabuco, desta vez, em “O Estadista do Império”: “A política exterior é a política por excelência, sobretudo para as nações quase de futuro, como o Brasil”. A referência ao País “quase de futuro” não era exceção no pensamento dos homens da época. A crença na excepcionalidade do País, acompanhada da percepção de que o Brasil só alcançaria sua grandeza quando cruzasse a linha de chegada da modernidade, inquietava aquela geração. Rui Barbosa, por exemplo, acreditava que o Brasil figurava entre as “nações repletas de porvir”. A formulação clássica de Stephen Zweig, concebida já em meados do século XX, povoou o imaginário coletivo brasileiro por gerações.
Nabuco, Barbosa e o austríaco Zweig, cada um a seu modo, acertaram no prognóstico. A noção de “quase futuro”, em um primeiro momento, dispensou o “quase” e, depois, fez do futuro o presente – como reconhecem hoje governos estrangeiros e a opinião pública mundial. A política exterior – “a política por excelência”, como define Nabuco – assume uma parte da responsabilidade desse processo, ao traduzir no cenário internacional a atitude de uma nação que, altivamente, pretende contribuir para a formação de uma ordem mais multipolar, mais democrática, mais justa e mais solidária.

Nabuco, Quixote brasileiro
Guiado em toda a sua trajetória, pelo casamento entre a teoria e a prática, Joaquim Nabuco pode ser considerado como um dos mais completos políticos nacionais.
Ele revela em “Minha Formação” as duas fontes principais para a fixação de suas convicções. A primeira é teórica – o livro “A Constituição Inglesa” de Walter Bagehot, obra sobre a qual confessa: “tirei dela, transformado-a a meu modo, a ferramenta toda com que trabalhei em política, excluindo somente a obra da abolição, cujo estoque de ideias teve para mim outra procedência”.
A outra fonte é prática, a experiência decisiva de sua infância, narrada no capítulo “Massangana”, no qual “a escravidão para mim cabe toda”, diz ele. Sua “identificação humana com os escravos”, segundo seus próprios termos, seria “um quadro inesquecido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida”.
A capacidade de unir a teoria à prática se revela, de modo especial, em “O Abolicionismo”, que, no entender de Francisco Iglésias, é: “a reflexão mais coerente, profunda e completa já feita no Brasil sobre o assunto, um dos livros mais importantes das ciências sociais jamais escritos no Brasil”. A opinião é corroborada, entre outros, por Evaldo Cabral de Melo, que, em conferência pronunciada no Itamaraty, em 1999, por ocasião do sesquicentenário do nascimento do nosso homenageado, aponta a centralidade, para Nabuco, da escravidão como elemento definidor da sociedade brasileira.
Nabuco foi um intelectual capaz de ver as realidades de seu tempo além de sua posição de classe ou de sua filiação ideológica. Conforme enfatizou Gilberto Freyre, Nabuco foi “um desertor de sua casta, de sua classe, de sua raça, cujos privilégios combateu com (...) vigor e (...) desassombro.” Leonardo Dantas Silva nos refere, nesse contexto, a um discurso de 1884, dirigido à classe dos Artistas Pernambucanos, em que Nabuco repudia a identificação com os proprietários de Terra e com os comerciantes: “escolheria”, diz ele, “o insignificante, o obscuro, o desprezado elemento operário, porque está nele o germe do futuro da nossa pátria; porque somente o trabalho manual dá força, vida, dignidade a um povo.”
Em outro registro, vale a pena lembrar a vigorosa defesa que Nabuco, católico, fez da secularização das instituições, tanto para os vivos como para os mortos. Certa feita proferiu, no Parlamento, discurso em que denuncia que “o cadáver do general Abreu e Lima passou pelas ruas do Recife, sem que a autoridade civil, que tinha jurisdição sobre o cemitério municipal, (...) reclamasse o corpo para dar-lhe sepultura. Quando se tirou a prova que não eram só os vivos, mas eram também os mortos que estavam sujeitos à perseguição religiosa”. Observe-se que Abreu e Lima – o general brasileiro que foi companheiro de Simon Bolívar – defendia um ideário político de inspiração socialista e que Nabuco era um liberal. Tal diferença de pontos de vista não arrefeceu a defesa que Nabuco, numa atitude digna do famoso aforismo de Voltaire, fez dos direitos humanos e da dignidade de Abreu e Lima, mesmo depois de morto. Como se sabe, o cadáver do general bolivariano foi afinal sepultado no “Cemitério dos Ingleses”, mais tolerante em matéria religiosa.
Machado de Assis, grande amigo e admirador de Nabuco, registra a “isenção de espírito” do grande pernambucano: “O seu juízo da Revolução Praieira (...) me pareceu excelente. Não traz aquele cheiro partidário, que sufoca os leitores”.
A racionalidade de tonalidade britânica (i.e. pragmática) de Nabuco, sublinhada por Gilberto Freyre, não prejudicou sua adesão a princípios, nem levou ao abandono do idealismo. Em “Minha Formação”, assim define sua vocação de homem público: “Procurei na política o lado moral, imaginei-a uma espécie de cavalaria moderna, a cavalaria andante dos princípios e das reformas”.
Essa autodefinição nos remete à figura de Don Quixote em sua fidelidade a um ideal, na doação de si mesmo a uma causa, tão bem descrita por San Tiago Dantas em seu famoso ensaio “ Don Quixote, apólogo da alma ocidental”
No prefácio de “Minha Formação”, Nabuco fez uma digressão, reveladora de sua atitude diante da vida e da sociedade, em que dá indícios de que a sua verdadeira causa, tão ou mais que a própria abolição, foi o Brasil. Cito uma passagem, que certamente servirá de inspiração àqueles que estão na vida pública: “Se alguma coisa observei no estudo do nosso passado, é quanto são fúteis as nossas tentativas para deprimir, e como sempre vinga a generosidade. Não dou, entretanto, o bon à tirer a este livro, senão porque estou convencido de que ele não enfraquecerá em ninguém o espírito de ação e de luta, a coragem e a resolução de combater por ideias que repute essenciais, mas somente indicará alguma das condições para que o triunfo possa ser considerado uma vitória nacional, ou uma vitória humana, e para que a vida, sem ser uma obra de arte, o que é dado a muito poucos, realize ao menos uma parcela de beleza”.

O enigma Nabuco
Nabuco provoca surpresas pelo foco pessoal na pioneira autobiografia “Minha Formação”, pela denúncia de toda sociedade em “O Abolicionismo” e pela exaltação e também crítica indireta que faz da “grande era brasileira” em “Um Estadista do Império”. Onde está afinal a essência de Nabuco?
É por um lado “desertor de sua casta, de sua classe, de sua raça”, no dizer de Gilberto Freyre, e, por outro, mantem uma fidelidade quase incompreensível à monarquia e a D. Pedro II. O monarquista e o reformista social, o diplomata e o teórico humanista, o defensor da ordem e da libertação humana, todos conviviam no espírito de Joaquim Nabuco. Mais do que a evolução do dândi juvenil para o intelectual engajado da maturidade – do Quincas o Belo para o abolicionista –, a ausência de aparente coesão no seu sistema de crenças amplifica seu caráter enigmático. A grandeza de Joaquim Nabuco também é descortinada pela natureza não-linear de seu pensamento.
Numa tentativa de compreensão da personalidade de Nabuco, destaca Francisco Iglésias que “a aparência apolínea do moço predestinado à política escondia um homem sensível, angustiado, muitas vezes perto do desespero”.
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“Il fait jour dans votre âme ainsi que sur vos fronts.
La nôtre est une nuit où nous égarons”

Este verso do poema trágico “Toussaint Louverture” de Lamartine é utilizado por Nabuco como epígrafe do seu “O Abolicionismo”. A evocação do herói da independência haitiana é de uma dramática oportunidade. Este achado, quase casual, em meio ao garimpo dos textos de Nabuco, me leva a concluir esta palestra com uma sentida e profunda homenagem aos muitos – brasileiros, haitianos e pessoas de uma plêiade de nacionalidades – que tiveram suas vidas ceifadas pelo terremoto que vitimou o Haiti no dia 12 último. E não só a eles, mas aos que, com teimosia, lutam por sobreviver – ou para fazer com que outros sobrevivam. O Brasil assumiu um compromisso irreversível com o presente e com o futuro deste país irmão e seu povo sofrido. Nossas Forças Armadas lideram o componente militar da operação de paz da ONU no Haiti desde 2004, tendo contribuído para a estabilização do país e para o bem-estar dos haitianos. Muitos dos brasileiros que perdemos na tragédia da semana passada se encontravam no Haiti para ajudar nesta tarefa. Pôde-se rastrear, no pensamento de Joaquim Nabuco, a solidariedade regional – e por que não dizer as afinidades afro-americanas? – como um princípio de ação diplomática. Nabuco acreditava que os destinos dos países do continente estavam entrelaçados. O sofrimento do povo haitiano é, agora mais do que nunca, comungado pelo povo brasileiro – e motivo adicional para o nosso engajamento. A homenagem ao Embaixador Joaquim Nabuco e ao seu empenho pela dignidade de todos os seres humanos é, por extensão, uma homenagem aos que se dedicam, inclusive às vezes com o sacrifício da própria vida, à melhora das condições de vida do homem sobre a Terra.
Muito obrigado.

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